Mito transgeracional – Neurose de classe

Para se “abrir” uma questão mítica em um trabalho terapêutico é necessário que se tenha conhecimento claro dos riscos para o sistema e a prévia inclusão de novos valores eleitos.

Mito geracional e Neurose de classe

A família com uma problemática mítica, nomeada Neurose de Classe (Vincent De Gaulejac), se norteia por valores sociais ditos superiores/inferiores: status, nobreza, riqueza, pobreza, perfeição, inteligência, importância, beleza, feúra, etc.

Quando um paciente chega a meu consultório e anuncia que já fez vários tipos de tratamentos e terapias e o sintoma persiste, já começo a desconfiar que se trata de uma questão mítica transgeracional. Com certeza não é um sintoma desenvolvido nessa geração presente e sim, esse sintoma já vem como crença arraigada ao longo de várias gerações.

É um mito, que serve como defesa de algo considerado “mal maior” dentro daquele sistema.

Vou contar a história de um cliente com 42 anos, afrodescendente, formado em Comunicação Social, que chegou a meu consultório e que já havia feito vários tipos de terapias ao longo de vários anos.

O pedido de ajuda em todas essas terapias passadas, estava ligado à sua questão profissional, financeira e social. E justamente naquele momento que procurou meu trabalho, estava na eminência de uma nova falência.

Ele era o terceiro filho de um pai, afrodescendente, semi-analfabeto, pedreiro e de uma mãe, também afrodescendente, semi-analfabeta. Tinha mais três irmãos que estudaram pouco e que viviam muitas dificuldades financeiras.

Aqui a questão mítica falava sobre estudos, sucesso profissional e status social, na vida de um membro de uma família afrodescendente no Brasil (neurose de classe).

Sabemos que nossos antepassados afrodescendentes por muitos séculos, foram escravizados e considerados socialmente como “inferiores” em nosso país (e em quase todo o mundo). Algo que infelizmente insiste em perdurar.

Mas esse homem afrodescendente, foi aquele membro do seu sistema que resolveu ir além dessas crenças familiares e sociais. Ele trabalhou e estudou, formando-se numa faculdade particular. Ou seja, ele foi contra o determinismo mítico familiar e o seu “castigo”, que ele próprio se impunha, eram as falências e não expansão profissional – lealdade familiar e neurose de classe.

Ele teve uma trajetória profissional, que oscilava entre ser empregado e ser profissional liberal.

E naquele momento em que chegou ao meu consultório, tinha um novo negócio próprio e estava correndo o risco de falir pela segunda vez.

A primeira falência tinha sido na década anterior, quando montou uma confecção de roupas e não tinha dado certo. Depois que se formou na faculdade em Comunicação Social, abriu uma pequena agência onde fazia um trabalho que estava sendo muito reconhecido, mas que por fazer investimentos errados, tinha se individado novamente.

Como profissional liberal, ele tentava, mas não conseguia tomar posse daquilo que ele dizia que mais desejava, que era deixar de ser empregado e trabalhar por conta própria com o que gostava. Ele não conseguia a sua autonomia financeira (carta de alforria) e diante a possibilidade de alçar vôos maiores, acabava por ter perdas financeiras, que o fazia ter que voltar para casa dos pais e trabalhar como empregado para pagar as dívidas da empresa falida.

Possivelmente, em suas outras terapias, não foi considerado essa questão da herança mítica de uma família de afrodescendentes brasileiros. A maioria dos descendentes de escravos, ainda vivem uma espécie de “escravidão” como determinismo mítico.

Sabemos também que a história do afrodescendente, fala de exclusão, da extirpação da liberdade e dos seus direitos humanos. E muitos afrodescendentes no Brasil ainda carregam impresso em sua história, o mito de escravo. E esse determinismo mítico é mantido pelos próprios afrodescendentes, além dos descendentes de outras raças.

Assim, ficou estabelecido que a primeira parte de sua terapia deveria ser a construção de sua carta de alforria.

A partir do estudo do seu genograma e do encontro com suas origens (dores e valores), aos poucos a sua consciência ampliou e ele percebeu o quanto oscilava entre episódios de sentimentos de inferioridade, menos valia, vergonha, raiva, tristeza e outros episódios de sentimentos de superioridade, orgulho e vaidade.

Ao longo do seu processo terapêutico, esse cliente teve também que lidar com o seu novo lugar no sistema – papel, função, pertencimento e diferenciação familiar (individuação).

Ele teve muitas recaídas, foi considerado esnobe e passou por muitos preconceitos dentro da própria família. Por fim, conseguiu a sua “carta de alforria”, alçou vôos maiores e consequentemente uma mudança de classe social.

A tarefa da Psicogenealogia Sistêmica é
descobrir uma forma de transformar a maldição mítica em missão mítica,
ajudando o cliente a usar o mesmo conteúdo de uma forma criativa e funcional.
Jaqueline Cássia de Oliveira 

A Psicogenealogia Sistêmica Aplicada trabalha com pelo menos três gerações, o mínimo necessário para se formar um mito, ou sintoma. Assim, a avaliação sempre será transgeracional.

Entendemos que um sintoma (ou mal menor), pode estar no lugar de um segredo formado a partir de temas de sexualidade (abusos, homossexualismo, pedofilia, traições); de dinheiro (falências, ganhos de forma ilícita, diferenças e exclusão social, etc) de morte (suicídio e homicídio); loucura e outros temas considerados vergonhosos.

As hipóteses para um sintoma ter se manifestado no sistema são inúmeras e dependerão do contexto familiar. Mas podemos começar criando hipóteses sobre o caso, pensando no sintoma como sendo uma tentativa de proteção de um segredo ou de uma vergonha, desviando a atenção para outro foco (mal menor). Esse sintoma também poderá ser a explicitação da pressão mítica ou até punição por ter se quebrado o determinismo mítico.

"Para o terapeuta, o mito familiar pode parecer irracional e irreal,
mas para os que dele participam,
ele é indispensável e parte integrante de sua realidade".
Antônio J. Ferreira, 1971

E finalmente, devemos considerar o terapeuta como aquele que tem a função de ser uma ponte do inconsciente à consciência de seu cliente. Mas não esquecendo dele próprio, de suas próprias histórias, seus mitos, suas neuroses de classe, suas meias verdades e meias mentiras.

Onde o terapeuta estiver paralisado – a sua inércia e ilusão –
será até aquele ponto que ele levará o seu cliente.
Jaqueline Cássia de Oliveira
Texto escrito por: Jaqueline Cássia de Oliveira
Psicóloga - CRP 04/7521
Psicoterapeuta Familiar Sistêmica (Brasil)
Psicogenealogista (Itália)

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