Os fantasmas e a lenda de Azzurrina
Você sabe como nasce uma lenda? De uma história verdadeira. A dinâmica é parecida com a do conhecido jogo infantil “telefone sem fio”. E a mesma coisa acontece com as histórias familiares. Alguém narra um fato que aconteceu em sua vida ou na vida de algum membro familiar, exaltando uma parte e escondendo outra.
Como na brincadeira do “telefone sem fio”, na qual um sussurra no ouvido do outro alguma coisa; nas famílias algumas coisas são sussurradas, trocandos os fatos, entre meias verdades e meias mentiras.
Então criamos mitos (lendas), que podem ser integradores ou desintegradores.
Os mitos integradores ou simbólicos (que unem, que conectam) são salutares. Para algo difícil de se entender, é criada então uma história para facilitar a integração do fato à realidade daquele momento. Por exemplo, a morte de um avô, pode ser narrada ao netinho como sendo o momento em que seu querido vovô se tornou uma estrelinha no céu.
Os mitos sagrados, em todas as culturas, tentam integrar o Céu e a Terra, o desconhecido ao conhecido, o incompreensível ao compreensível. Da mesma forma que nosso inconsciente usa a linguagem simbólica para juntar nossos dois mundos – o externo e o interno, a aparência e a essência.
Mas de acordo com a cultura, a religião, o status social, o grau de perfeição e vaidade, o contrário pode acontecer em nossas famílias: os fatos dolorosos ou vergonhosos são escondidos, criando segredos inconfessáveis, onde se instala um mito diabólico. Diabólico porque divide, cinde, dá dupla mensagem, excluindo algo que faz parte do sistema, do REAL, do TODO. Aqui aparecem as loucuras, as tragédias, como se fossem fantasmas que, de quando em quando, aparecem e assombram.
Estando na Itália, por temporadas mais longas, tenho tido oportunidade de visitar cidades e castelos medievais. E os castelos têm muitas lendas e também muitos fantasmas!!
E quem são os fantasmas?
A etimologia da palavra fantasma vem do grego “phantázein” fazer aparecer, por sua vez derivada de “phaínein” mostrar. Essa palavra e seu sentido são ligados a “phos” luz, pois a presença dela nos mostra o que há para ver.
Fantasma é tudo aquilo ou todo aquele que, por algum motivo, foi EXCLUÍDO indevidamente do campo de visão do sistema, seja por vergonha, por dor, por sofrimento, por trauma, sendo desintegrado do TODO.
A questão é que, o que foi excluído indevidamente de seu sistema “aparecerá” como um membro fantasma, que então assombrará através de sintomas, loucuras, repetições de tragédias ou materializando-se em um novo membro nas gerações subsequentes.
É como se o fantasma (o excluído), de quando em quando, aparecesse dizendo ao seu sistema:
– Vocês me excluíram, mas eu estou aqui!!!
Eu estou aqui!!
Esse “fenômeno” pode acontecer em várias circunstâncias, como por exemplo, quando perdemos um membro do corpo em um acidente e continuamos a senti-lo. Também quando excluímos um sentimento que nos “aparece” em forma de sintoma, ou uma situação traumática que nos “aparece” em forma de pesadelos oníricos.
Os fantasmas nos assombram porque não queremos vê-los e integrá-los à nossa vida!
São nossos lados sombras que insistimos em esconder, em excluir. E, ao mesmo tempo em que escondemos algo que nos traumatizou ou que nos envergonhou, criamos imediatamente uma aparência bonita, perfeita, acima de qualquer suspeita.
E então, visitando o castelo de Montebello na região Emilia Romagna, conheci um pouco mais sobre uma fantasminha por aqui muito famosa: Azzurrina – em Português Azulzinha.
…tinha os olhos da cor do céu e os cabelos claros com reflexos azuis…
Azzurrina era descendente de uma família muito rica, os Malatestas. Eram proprietários de muitas terras e muitos reinos, onde os casamentos eram contratados pela igreja e pelo estado para juntar famílias nobres, aumentar o poder e também apaziguar guerras.
A lenda diz que Azzurrina, protagonista de um triste fato, era uma menina de 8 anos, albina e de olhos azuis.
Mas naquela época medieval, as mulheres albinas eram consideradas bruxas e teriam poderes sobrenaturais e demoníacos, portanto, não eram bem vistas.
Essa história, que é contada por três séculos, é cheia de elementos de fantasia, fascinando até hoje.
Narra a lenda que Azzurrina nasceu albina e a diversidade do outro é uma coisa que sempre assustou o ser humano, levando, às vezes, a acreditar que o melhor remédio é eliminar o diferente.
Então, para defender (ou esconder?) a filha, inicialmente seus pais tingiam seu cabelo com uma tinta que os deixavam azulados.
Por causa disso, o pai decidiu mantê-la sob vigilância de dois guardas: Romenico e Ruggero e não a deixava sair de casa, para protegê-la dos preconceitos e do que as pessoas falariam a seu respeito.
Conta-se que, em dezembro de 1383, enquanto o pai estava fora, numa batalha, Azzurrina vigiada pelos dois guardas, brincava no castelo de Montebello, com uma bolinha de pano, enquanto lá fora começava um forte temporal.
Segundo a lenda, sua bolinha caiu escada abaixo e Azzurrina desceu atrás dela. Também os guardiões da menina a seguiram, mas ela caiu do alto dessa escada até o interno do castelo onde tinha um grande monte de neve (geleira). Os guardas escutaram um grito horrível, mas ao chegarem lá, não encontraram nada.
Dizem que o corpo de Azzurrina nunca foi encontrado…
E a lenda diz que o fantasma de Azzurrina ainda está no castelo e que aparece de 5 em 5 anos, em concomitância com o solstício de verão.
Até hoje, muitos estudiosos vão até o castelo Montebello para estudar os fenômenos sobrenaturais que acontecem por lá. Tem até gravações de uma criança chamando “mamma”, também histórias sobre objetos que mudam de lugar e tantos casos sobre fantasmas que vivem nesse castelo, além do fantasminha da menina.
Alguns historiadores pesquisaram mais sobre a lenda de Azzurrina e encontraram outras respostas para os fatos, chegando a uma outra narrativa:
O senhor do castelo Montebello era casado com a filha da então oponente família Malatesta. Mas ele era feio, sem graça, mais velho e manco. O casamento foi proposto para juntar as posses e poderes das duas famílias.
Mas a sua jovem e bela esposa sempre o traíra.
Ela engravidou e o marido esperava que tivessem um filho homem. Porém nasceu uma menina, que recebeu o nome de Adelina. A questão é que Adelina era muito diferente fisicamente, porque nasceu extremamente loira e de olhos azuis, o que deixava registrada uma traição.
Portanto, a suspeita aqui é que esse marido traído, por vergonha, tenha dado um jeito de “desaparecer” com a menina, fruto do adultério de sua esposa.
História ou lenda, a questão é que os fantasmas são os excluídos indevidamente do seu sistema de pertencimento!
A sugestão é prestarmos muita atenção aos nossos fantasmas!!
E quando eles aparecerem, podemos dizer:
_ Ok! Eu te olho! Você está aqui sim!
_ Você existe e tem o direito de existir!
_ Você é um membro importante da minha história sim
E podemos fazer perguntas:
_ Mas quem é você?
_ O que você precisa?
_ Quem te excluiu?
_ Como posso te incluir e te dar um lugar de honra em minha história?
Podemos também ampliar essa ideia e ver esse fenômeno de forma social e até global. Quando “vemos” (muitas vezes não querendo ver) pessoas que são excluídas socialmente, psicologicamente, culturalmente, financeiramente, etc., ao invés de nos assustarmos como se elas fossem fantasmas, podemos vê-las como partes excluídas indevidamente do nosso SISTEMA, do REAL, do TODO.
O TODO É MAIOR QUE A SOMA DAS PARTES!
Jaqueline Cássia de Oliveira
Psicóloga CRP 04/7521
Psicoterapeuta Familiar Sistêmica (Brasil)
Formação em Psicogenealogia (Itália)